TONI'IN LOVE

05 de Abril / 2020

Diário de uma quarentena na Espanha

Neste momento em que o mundo está vivendo uma pandemia e nós brasileiros estamos repletos de preocupações e perguntas, pedimos para a nossa ToninLover Greice Dallegrave contar para nós um pouquinho da sua experiência que está vivendo na Espanha, um dos países mais afetados pelo Covid-19. 

E não poderia ser de outra forma, um relato emocionante e que nos traz muitos ensinamentos, vale muito a pena ler.

Olá toninlovers! Espero que todos vocês estejam bem e tentando passar por esse momento da melhor forma possível.

Vou contar um pouquinho da minha experiência de quarentena na Espanha, país atualmente com um número muito expressivo de contagiados e de mortes pelo coronavírus.

Comecemos pelo começo.

Estou em Córdoba desde o início de fevereiro, em função de uma bolsa de estudos para estudar fisioterapia, que ganhei da minha faculdade e do Santander, em Caxias do Sul. Córdoba é uma cidade encantadora, de uns 500 mil habitantes, com muitas construções que nos remetem ao passado, casinhas simpáticas e ruas estreitas, pontos turísticos incríveis e cobiçados pelos visitantes. Caminhar ou pedalar nas ruas à noite é uma prática muito comum (até eu, sedentária assumida, havia aderido às corridas noturnas diárias e estava muito orgulhosa do meu desempenho). Na Ponte Romana, um dos pontos mais icônicos, sempre há alguém tocando violino ou algum outro instrumento, enquanto as luzes da Mesquita deixam tudo ainda mais bonito. Nos finais de semana, a cidade recebe um mar de turistas do mundo inteiro.

Ponte Romana

                                 Ponte Romana 

                                                      Mesquita 

                           Torre da Mesquita

Minha maior preocupação, antes das aulas iniciarem, era o idioma. Eu falava o espanhol de sobrevivência e quando cheguei aqui vi que o idioma nativo era muito mais difícil do que imaginei. Comecei as aulas, conheci pessoas (brasileiros e, inclusive, gaúchos e caxienses, que jamais imaginei encontrar em Córdoba), caminhei pela cidade inteira, fiz algumas trilhas, conheci cidades e ‘pueblos’ próximos e tinha planos de visitar outros países. Estava até fazendo academia.

                Eu e brasileiros queridos, em Sevilha

                  Alcázar de Los Reyes Cristianos

Mas, no dia 13 de março, tudo mudou.

O governo espanhol declarou estado de alarme por duas semanas, pois o número de contagiados pelo coronavírus estava aumentando exponencialmente, cenário que seguia o mesmo rumo da Itália. A universidade anunciou que nesse período as aulas seriam online. Estabelecimentos comerciais fecharam. Fronteiras terrestres também. Deveríamos permanecer em casa e sair apenas para ir ao mercado ou usufruir de outros serviços essenciais. Ok. Depois dessas duas semanas, tudo voltaria ao normal, teríamos o feriado da semana santa e a vida seguiria. Eu, vendo como as coisas se desenrolavam, decidi voltar ao Brasil. Conversei com os responsáveis pelo meu intercâmbio em Caxias do Sul e cheguei à conclusão que era a melhor decisão a tomar. Adiantei minha passagem de julho para o dia 19 de março (e paguei multa por isso, claro), viajei à Sevilha na véspera (não havia transporte via trem ou ônibus no dia da viagem em si, pela redução dos itinerários em função do vírus) e rezei para o voo não ser cancelado, o que estava ocorrendo com frequência em diversos outros países. Cheguei ao aeroporto e, na hora do check-in, a funcionária da Lufthansa pediu se eu tinha o passaporte brasileiro, depois de eu ter apresentado o italiano. A resposta óbvia deveria ser ‘claro, está aqui’, mas não. Eu tinha viajado só com o italiano (recentemente eu havia conseguido a dupla cidadania e saí do país me achando o máximo por ter um passaporte que me permitiria livre trânsito na Europa – recebi um sermão na imigração em Guarulhos por ser tão amadora e não ter o documento brasileiro comigo, mas após análise do mesmo no sistema permitiram minha saída do país desde que eu apresentasse uma foto do passaporte brasileiro na volta). E, justamente no dia da minha suposta volta, o Brasil decretou que só permitiria a entrada de pessoas portando o passaporte. Ou seja: meu documento italiano não serviria de nada naquele momento. Óbvio que eu tentei argumentar, mas meu coração já dizia que não ia rolar.  

Me restou voltar ao ponto de partida, Córdoba. Uber, trem, táxi.

Por sorte, a mulher onde me hospedo já havia dito que, se não desse certo, eu poderia voltar pra casa. E ela me recebeu de braços abertos assim que eu cheguei.

Preciso abrir um parênteses pra falar da Emilia. É uma espanhola de 60 anos, muito simpática e que, no momento, está em tratamento para o câncer de mama. Eu digo que ela é uma super guerreira, porque enfrenta a doença de cabeça erguida e com muito resiliência. A Emi sempre diz: ‘sei que não é o mesmo que estar com a tua família, mas quero que você saiba que está em casa, que não te faltará nada e que aqui te queremos muito’.

                 Eu, a dançarina de flamenco e a Emi

Depois da minha primeira tentativa de voltar ao Brasil, fui atrás do Consulado. Eu só queria uma coisa: voltar ao meu país. Nada mais me importava. Me disponibilizei a comprar uma passagem nova, assumir novos gastos e voltar por Madrid, mas nesse momento o número de contágios e de mortes já havia aumentado muito, principalmente na capital. A circulação de pessoas estava controladíssima, com multas pesadas e incertezas de que os voos realmente sairiam. Segundos antes de dar o aval pra agência emitir minha passagem para o dia 25 de março, refleti, respirei e, por medo e por segurança, optei por permanecer aqui mais um tempo. Se eu arriscasse viajar por Madrid e o voo fosse cancelado, sequer teria como voltar à Córdoba. 

Entre a primeira e a segunda tentativa de voltar, tive muitas crises de ansiedade. É muito difícil estar longe da família e dos amigos em uma situação assim. Medo, nervosismo, preocupação, dúvida, aflição, agonia, pânico. Nos meios de comunicação da Espanha, só se falava em números crescentes do coronavírus.

Hoje, dia 2 de abril, completamos 20 dias de confinamento total, com saídas permitidas somente para coisas essenciais, como ir ao mercado ou à farmácia, desde que se mantenha a distância necessária e que se respeite o limite máximo de pessoas dentro dos estabelecimentos. Todos seguem as regras à risca, e os poucos que se atrevem a desrespeitá-las podem pagar multas pesadas ou ir pra cadeia.

Em todos esses dias, até pouco tempo atrás, eu fiz várias coisas ‘úteis’: ia do Instagram ao Whatsapp e vice e versa, instalei trezentos jogos no celular (que me irritavam nos primeiros 2 minutos jogando), assisti filmes, séries, lavei a louça, tirei o lixo, dormi, comprei um programa de hipnoterapia que não segui, tomei chimarrão, li e assisti muitas coisas sobre o coronavírus em todas as partes do mundo (na expectativa do anúncio da vacina ou da cura), pensei muito em milhares de coisas (era o que eu mais fazia), me culpei muito por não ter trazido meu passaporte brasileiro, tentei tranquilizar minha família, troquei e-mails com o consulado, cancelei viagens e planos, pesquisei muitos voos de volta e não me exercitei e nem estudei quase nada. Faculdade praticamente abandonada. Não conseguia me concentrar e na verdade não tinha a menor vontade, por ter outras preocupações. Muitas pessoas me mandando mensagens pra saber como eu estava, preocupadas com a situação da pandemia aqui na Espanha. E aí, depois disso e depois de eu me dar conta de que estou meio presa aqui por tempo indeterminado, tentei me acalmar e finalmente aceitar.

Ok. Nesse momento, não tenho o que fazer.

Não tenho como fretar um avião e voltar ao Brasil. Não tenho como me deslocar. E, me dando conta de que eu não podia mudar a situação na qual eu me encontrava, eu fui me acalmando um pouquinho mais a cada dia. Inspirando, expirando e tentando não pirar.

A gente só tem o hoje né. O ontem passou e o amanhã não nos pertence. Então eu optei por pensar no que eu poderia fazer com o hoje, com o agora, em meio a todo esse caos. 

Decidi estudar um pouco mais (não só coisas da faculdade, mas outros assuntos que despertam meu interesse, até porque aulas online não me atraem). E não estou realmente dando muita importância pra isso. Agora quero aproveitar o grande tempo que tenho para me fortalecer mentalmente e espiritualmente. Estou assistindo às missas do Frei Jaime no Facebook, porque me fazem bem. Se paguei por um programa de hipnoterapia, está na hora de eu fazer valer esse dinheiro. Estudar um pouquinho de fisioterapia diariamente (quer seja do semestre específico ou outras áreas que me interessam mais), fazer um mínimo de exercício físico, pegar um solzinho no terraço, assistir a algumas lives interessantes, meditar, rezar, sair da cama e tomar café da manhã mais cedo, lavar a louça, tirar o lixo, aplaudir os profissionais de saúde às 20h (que merecem todas as homenagens e aqui essa rotina é sagrada desde o início da quarentena), comer muita laranja, engolir um dente de alho toda manhã, respirar corretamente e, principalmente, agradecer.

Agradecer muito.

                        Companhia da quarentena

Aos amigos e conhecidos (e até desconhecidos) que se preocupam comigo aqui e me mandam mensagens todos os dias. Gente que eu conheço há séculos e com quem convivo e gente que eu conheci há pouco tempo.

À minha família, que mesmo distante fisicamente, me tranquiliza de uma forma que eu nem sei explicar.

À tecnologia que nos permite ter essas conexões. Um salve aos aplicativos!

Ao fato de eu estar em uma casa confortável, segura, com uma pessoa muito legal que cozinha pra mim – a Emi faz coisas maravilhosas - e que tem problemas maiores do que eu para enfrentar e mesmo assim mantém o bom-humor. Tem muitas pessoas que estão presas em outros países sem lugar para ficar, sem dinheiro e sem qualquer expectativa de retorno ao seu país de origem, né.

                        Um dos pratos da Emi

Eu nunca pensei que tivesse tantos amigos. Tenho conhecidos que vivem aqui na Espanha, na Tailândia, em Portugal, parentes na França...muitos brasileiros em outros países dispostos a ajudar, seja com palavras de otimismo, com hospedagem e até com ajuda financeira, caso seja necessário. Não cito nomes pra não correr o risco de esquecer alguém. Gente, brasileiro pode ter mil defeitos, pode ser isso ou aquilo. Mas as qualidades se sobressaem, principalmente nesses momentos difíceis e eu me sinto muito feliz e grata por ter essas conexões. E por ser brasileira.

Não sei quando essa pandemia vai terminar. Até lá, o que eu posso recomendar, pela minha experiência aqui, é que mantenham as recomendações que todos já conhecem, sejam de distanciamento ou de higiene. Que pratiquem a empatia. Torço para que no Brasil a situação não seja a mesma daqui. As mudanças serão enormes, isso é fato...no mundo, na economia, nos indivíduos. Hoje, o que eu mais quero é reencontrar as pessoas e abraçar com muita força, principalmente meus familiares. Quero ter uma aula dentro de uma sala lotada. Quero tomar chimarrão com outros e dividir a mesma cuia sem medo. Chega de inventar desculpas pra não visitar ou convidar as pessoas pra seja lá o que for. A frase ‘vamos marcar alguma coisa uma hora dessas?’ agora não faz nenhum sentido e precisa ser urgentemente substituída pela pergunta ‘quando?’

Nos vemos logo, Brasil!

Greice, muito obrigado por compartilhar com nós esta experiência emocionante e tão difícil.

Estamos torcendo por você e te esperando de braços abertos.